Berlim, 14 de agosto de 2019 - Quarta-feira.
É a etapa final de nossa viagem. Um imprevisto nos atrasou no percurso Munique-Berlim e fizemos uma escala não planejada em Bad Kösen, uma antiga cidade-spa localizada na antiga Alemanha Oriental, onde fomos surpreendidos pela acomodação de alto padrão com diária que cabia no nosso orçamento.
Chegamos aqui por influência de um tio que voltou da Estrada do Românico encantado com a bela Uta, as vinícolas, os monumentos históricos e paisagens culturais autênticas, saídas ilesas da Segunda Guerra Mundial e inacessíveis para os alemães ocidentais até a reunificação da Alemanha.
Teria sido uma simples escala de viagem, mas lembro deste como a descoberta fora dos roteiros tradicionais de viagem.
PELA MANHÃ AINDA NO HOTEL
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Dormimos como anjos entre lençóis gostosos e cobertores fofinhos depois do relaxamento nas piscinas de águas termais de salmoura no moderno Spa no dia anterior (leia aqui). Fomos os primeiros no refeitório. Nossa BMW F650ST, ano 99, dormiu em frente à janela e era como se ela estivesse conosco à mesa do café da manhã. Porque não? Ela é uma parte essencial da nossa jornada.
O plano do dia era terminar o percurso até Berlim, mas ainda daria tempo de saborear um pouco da Estrada do Românico passando por uma ou duas atrações mais próximas.
CAMINHADA POR BAD KÖSEN
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A Rota do Românico está nesta parte da Alemanha que foi um centro de poder da Europa medieval. O traçado de aproximadamente 1.000 km conecta 76 lugares e 88 monumentos históricos tão próximos entre si que podem ser explorados até mesmo a pé ou bicicleta pelas trilhas demarcadas que atravessam reservas naturais e vinícolas de região demarcada.
A cidade cresceu junto ao rio de águas calmas com simpáticos jardins perfumados ao longo da margem elevada. A encosta do vale é íngreme e de verde denso, pontilhada de pequenos palácios e fortificações que podem ser vistos ao longe. Em nossa despretensiosa caminhada junto ao rio Saale, antes do check-out, fomos surpreendidos por uma convidativa trilha demarcada, a ser feita a pé ou bicicleta pela região de videiras e vinhos de Saale-Unstrut repleta de atrações em meio à natureza.
Com tempo limitado para explorar as promessas daquela trilha, optamos por subir as ladeiras estreitas pela parte mais antiga da vila para ver de perto uma estranha e enorme estrutura de madeira preenchida com gravetos retorcidos, instalada no centro de um belo parque arborizado com vários ambientes para sentar no alto da colina.
Uma placa informa tratar-se de uma salina histórica ainda em operação. A salmoura bombeada do poço a partir de casa em restauro junto ao rio é levada ao topo e gotejada sobre os gravetos onde o sal se concentra por evaporação. Não há nada semelhante no Brasil, nem no processo de obtenção de sal, nem no mecanismo de duas hastes pendulares do sistema de bombeamento acionado originalmente por uma roda d’água e atualmente por eletricidade.
Originalmente o “Gradierwerk" servia à produção de sal, hoje sua finalidade é medicinal, produzindo ar salgado para terapias de inalação. Várias pessoas estavam sentadas nos bancos próximos da estrutura fazendo a tal terapia, complementada pelas piscinas de águas termais de salmoura das clínicas.
O PARQUE E A SALINA HISTÓRICA
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Na volta ao hotel passamos pela Casa Românica identificada por uma placa com símbolo UNESCO de Patrimônio Cultural da Humanidade. A singela Casa Românica é a mais antiga construção românica da Alemanha Central, nasceu como estábulo de um mosteiro cisterciense e atualmente abriga o museu da cidade.
Já estávamos no limite do tempo para fazermos o check-out, então não entramos no museu, mas demos uma espiadinha na loja de fábrica com os mais lindos e realistas bichinhos de pelúcia artesanais produzidos pela Manufatura de brinquedos Kösener Spielzeug Manufaktur, vizinha ao museu. É muita fofura num lugar só!
CASA ROMÂNICA E BICHINHOS DE PELÚCIA
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Chegar a Naumburg é rápido e bonito. Apenas 7 km separam o hotel de Bad Kösen da Catedral de Naumburg, e é possível fazer o percurso a pé. Depois do check-out, seguimos de moto através de um parque natural e pela área rural até a periferia de Naumburg, que se converte rapidamente numa paisagem urbana densa, arborizada, organizada e com bastante trânsito. Não percebemos aqui o agito turístico que vimos em outros destinos mais conhecidos, mesmo durante o auge temporada de verão, e achamos a cidade calma, receptiva, simpática e relaxada.
Deixamos a moto na praça de estacionamento que conta com banheiros públicos guardados por uma zeladora muito divertida e disposta a responder suas dúvidas. Dali é possível ver as torres da catedral. Fomos recebidos pelo sorriso de Reglindes, a princesa polonesa, estampada num enorme outdoor fixado à fachada de uma casa secular. Há trinta anos uma fábrica abandonada com enormes chaminés bloqueava esta vista, mas o município demoliu a fábrica a fim de priorizar o monumento religioso e seu entorno imediato adequando-o ao contexto histórico. Valeu à pena!
NO CAMINHO A NAUMBURG
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MAPA TURÍSTICO DE NAMBURG
- Domplatz = Praça da Catedral; Markt = Praça do Mercado
Por causa do calor Gilson deixou as botas sobre o banco da moto e subiu descalço o caminho de paralelepípedos ao lado da catedral de São Pedro e São Paulo. Acima de suas massivas paredes de pedra, o olhar severo das gárgulas nos acompanha e somos recebidos pela sombra acolhedora das árvores que refrescam a fonte na praça em frente à catedral de entorno bem cuidado que valoriza a monumentalidade discreta do monumento.
Não sabíamos ainda que a catedral era um dos mais novos Patrimônios Culturais da Humanidade, inserido na lista da UNESCO um ano antes.
ENTORNO DA CATEDRAL
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ENTORNO DA CATEDRAL
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Com o ingresso em mãos, pensamos que seria simples encontrar Uta, a mulher mais bela da idade média a quem meu tio havia nos instruído a procurar, o que acabou se mostrando um equívoco. Gilson seguiu numa busca objetiva e autônoma, atravessando todas as passagens, andou por todos os cômodos, guiado pelo próprio instinto e curiosidade e uma certa pressa de quem tem fome.
Já eu deixei o áudio guia me levar pela história da arte que revelou uma síntese extraordinária das artes medievais, tangenciando algumas obras modernas de intervenções recentes. Dois meninos usavam uma versão infantil do áudio guia e pareciam muito atentos e interessados. Valeu cada centavo!
O BATISTÉRIO
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Depois do tour, devolvi o áudio guia e fui procurar Gilson, e o encontrei sob a sombra de um toldo em frente à praça, saboreando uma deliciosa torta. Ele não tinha encontrado Uta e quis voltar para vê-la de perto, o que foi autorizado pela simpática funcionária da bilheteria, que achou graça no motociclista descalço que não encontrou a ilustre dama de pedra.
ENTRADA NA CATEDRAL
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Folder com o mapa que acompanha o áudioguia.
Desta vez fiz o papel do audioguia e conduzi Gilson pela rota que eu tinha feito antes: Descemos à cripta para ver o belo crucifixo de madeira do período mais antigo da catedral guardado no ambiente gélido e de iluminação esparsa. Subimos pela escada protegida por um corrimão de bronze com uma lúdica "Pregação de São Francisco Aos Animais" para chegar ao do coro leste localizado sobre a cripta, um espaço inundado pela luz que atravessas os vitrais multicoloridos de uso reservado ao corpo eclesiástico. Um púlpito expõe a cópia de um livro coral manuscrito, cujo original está exposto na Sala dos Tesouros. A descida pela escada no outro lado é protegida pelo corrimão gêmeo com a representação do “Caminho Estreito” que os fiéis devem escalar para alcançar o paraíso.
CRIPTA E ESCADA DO CORO LESTE
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CORO LESTE
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No entendimento dos construtores medievais, a obra agradou Deus porque não ruiu como tantas outras daquele período de experimentação de novas técnicas de construção. A nave central, destinada às pessoas comuns, é iluminada por largos feixes de luz que penetram pelas janelas instaladas próximas das abóbadas, compondo um jogo de luz e sombra que destaca as formas dos pilares. A parede externa da cripta que serve de apoio ao altar da nave central é coroada pela mais antiga e intacta tela de madeira policromática da Alemanha e funciona como guarda-corpo do espaço separado aos religiosos lá em cima no coro leste.
NAVE CENTRAL
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Na extremidade oposta da nave central fica o intrincado coro oeste do gótico primitivo, esculpido em rocha calcária, que separa o espaço destinado aos leigos da capela dos doadores. É uma obra prima do Mestre de Naumburg, que emana uma dramaticidade desconhecida até então. Vívidas representações de plantas, flores e frutas decoram capitéis e frisos. Uma expressiva representação da Última Ceia e da Paixão de Cristo decora o arremate da parede que funciona como guarda-corpo, e um crucifixo com imagem de Cristo entre Maria e Pedro em tamanho natural mostra dor gravada em pedra, como se o próprio material tivesse capacidade de sentir.
CORO OESTE
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Sob o crucifixo abre-se a passagem à Capela dos doadores que também é obra do Mestre de Naumburg. A luz que atravessam os belos vitrais ofusca a visão e é preciso olhar pra cima para ver as pessoas esculpidas nos blocos de pedra integrados à parede. Aqui, ao invés de santos, reis ou imperadores encontramos imagens de pessoas comuns que foram homenageadas por terem financiado a construção da Catedral, uma condição singular e novidade na idade média.
As doze figuras são de um realismo até então inédito e mesmo nos dias atuais impressionante por expressarem movimento, sentimentos e personalidades individuais, o que é intrigante porque foram criadas duzentos anos após a morte de seus personagens. Elas ficam posicionadas nos vãos entre as aberturas, intuindo que a estrutura começa a ficar independente da vedação das paredes e ganhar altura, característica que seria dominada mais tarde.
As figuras mais famosas são os casais próximos do altar, Margravina Uta von Ballenstedt e seu marido Margrave Ekkehard II à direita, e Margravina Reglindes e seu marido Margrave Hermann, irmão de Ekkehard, à esquerda.
Vitrais parcialmente ocultos em obras de restauração com alguns doadores entre os vitrais -
Casal Uta e Ekkehard II e o fotógrafo encantado com o sorriso de Reglintes. -
A suavidade da escultura do Mestre de Naumburg.
Uta ficou conhecida como a mulher mais bela da idade média e sua escultura foi foco de peregrinação desde então. É descrita como graciosa, sublime, serena e aristocrática, às vezes determinada e fria. Embora pareça segura no papel da esposa de um nobre guardião das fronteiras e olhe com firmeza o altar, uma aura de mistério a envolve e o levantar da gola indica uma vulnerabilidade destoante. Humberto Eco mencionou certa vez, que dentre todas as mulheres retratadas na história da arte, teria gostado de "ficar" com ela. Nazistas usaram largamente a imagem de Uta e Ekkehard como representação de casal ariano perfeito, enquanto Walt Disney preencheu a beleza de Uta com a malevolência da madrasta de Branca de Neve, reconhecível apenas pelas roupas e coroa reluzente.
Reglindes, no lado oposto, olha diretamente para quem está a sua frente com um sorriso largo, espontâneo e olhar afetuoso. Menos conhecida, a princesa polonesa que nos recebeu lá fora no oudtoor, parece feliz aqui dentro com nossa visita e recolhe as vestimentas como se não quisesse tropeçar no manto em sua aproximação de boas vindas, lembrando os nativos que conhecemos naquele dia. Talvez o artista tenha escolhido representá-la assim porque era mais livre que Uta e faleceu muito jovem, antes que a vida medieval lhe sugasse a vivacidade, deixando seu marido representado diminuído e com expressão de grande sofrimento, apoiando-se em um escudo.
CAPELA DO DOADORES
Margrave Ekkehard II e Margravina Uta von Ballenstedt
Margrave Hermann e Margravina Reglindes
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CAPELA DE SANTA ISABEL
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CAPELA DO APÓSTOLOS
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O CLÁSTRO E O PÁTIO INTERNO
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CALÇADÃO ENTRE A PRAÇA DA CATEDRAL E PRAÇA DO MERCADO
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Um passeio pelo claustro em torno do pátio interno ensolarado nos dá outra perspectiva do conjunto da catedral antes de sairmos pensativos para a praça. Caminhamos pelo calçadão bonito e cheio de vida até a Praça do Mercado e voltamos para uma segunda rodada de torta com café na deliciosa cafeteria em frente à catedral, dividindo a mesa com duas simpáticas senhoras. Era meio da tarde quando fechamos a conta e voltamos ao estacionamento para reencontrar as botas do Gilson no mesmo lugar onde as deixamos, e nos despedimos da colorida e receptiva Naumburg com vontade de ficar e conhecê-la melhor.
Seguimos viagem. Nossa última escala seria Berlim, a cidade histórica que se reinventa constantemente, e que nos ensinaria uma lição. Mas essa já é outra história...
NO CAMINHO A BERLIM
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O Dia em Números:
Deslocamento:
Trajeto de Bad Kösen a Berlim, passando por Naumburg
Distância percorrida de moto = 243 km ≈ Duração = 3h20min.
Início 10h - Fim 23h15min.
Despesas Essenciais:
Combustível: € 18,74
Hospedagem em Berlim: € 100,00
Alimentação: € 26,90
Atrações (ingressos+áudio guia): € 18,00
TOTAL: € 163,64
Custos de manutenção:
Serviços: € 0,00
Peças: € 0,00
Ferramentas: € 0,00
Material de consumo: € 0,00
SUBTOTAL B - € 0,00
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Links úteis e interessantes:
Rota do Românico: https://www.strassederromanik.de/en/southern-route.html
Catedral de Naumburg (site oficial): https://www.naumburger-dom.de/
